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Mercado de capitais supera poupança no financiamento imobiliário

O volume de recursos originado no mercado de capitais superou, pela primeira vez na história, a participação da poupança na estrutura de “funding”, ou seja, das fontes de recursos para o crédito imobiliário. Dados da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip) mostram que os instrumentos de financiamento privado, como certificados de recebíveis imobiliários (CRI), fundos imobiliários (FII) e os títulos de captação bancária, como as letras de crédito imobiliário (LCI) e as letras imobiliárias garantidas (LIG), aumentaram a participação na estrutura de funding de 24% no fim de 2021 para 38% no término do primeiro semestre de 2023, com saldo total de R$ 787 bilhões. Nesse mesmo período, a fatia da poupança encolheu de 49% para 36%, com estoque de R$ 738 bilhões.

Mesmo com as saídas líquidas da caderneta, o total de recursos disponíveis às linhas de financiamento aumentou em 27% de 2021 para cá. O montante subiu de R$ 1,62 trilhão há dois anos e meio para R$ 2,06 trilhões no início da segunda metade de 2023.

As estatísticas são um sinal inequívoco de que o crédito imobiliário brasileiro vem passando por uma transformação estrutural nos últimos anos. Da mesma forma que especialistas têm tentado encontrar explicações para a surpreendente força da economia mesmo em ambiente de taxas de juros tão restritivas, o financiamento habitacional segue caminho semelhante: o setor tem mostrado resiliência que não encontra paralelo nos ciclos anteriores de aperto monetário.

Segundo projeções da Abecip, a concessão de novos empréstimos para aquisição da casa própria deve fechar 2023 com o terceiro melhor volume da história, atrás apenas de 2021 e 2022. “Nesses últimos três anos, o mercado imobiliário mudou de patamar no Brasil, seja no crédito imobiliário ou em comercialização”, afirma o diretor de negócios imobiliários do Santander, Sandro Gamba, recém-eleito presidente da entidade para o biênio de 2024 a 2025.

A Abecip estima que o setor vai fechar o ano com uma produção de R$ 156 bilhões para operações com recursos da poupança (SBPE). Se confirmada, a cifra coloca o período atual bem à frente de 2020, que ocupa o quarto lugar na lista de melhores anos, quando os novos financiamentos alcançaram R$ 124 bilhões.

O volume surpreende também porque os patamares nos anos pré-pandemia se situavam muito abaixo da produção atual. De acordo com a série histórica da Abecip, o pico do período antes da crise da covid- 19 ocorreu em 2014, quando o mercado concedeu R$ 112,85 bilhões em financiamentos imobiliários.

Na visão de especialistas, houve uma conjunção de fatores que tornaram o crédito mais sustentável mesmo em condições difíceis. Para as instituições financeiras, o desenvolvimento do mercado de capitais possibilitou que os recursos continuassem a fluir para as linhas de financiamento habitacional mesmo com o alto volume de saídas líquidas da poupança, a principal fonte de dinheiro para essas linhas.

Essa contribuição não foi trivial. Entre 2022 e 2023, as condições negativas foram tão severas que poderiam ser vistas quase como um teste de estresse para o sistema de crédito imobiliário com recursos da poupança. O juro básico atingiu a máxima do último ciclo de aperto monetário, de 13,75% ao ano, em agosto de 2022 e só começou a baixar um ano depois. Além disso, o maior volume de saída líquida da história da caderneta, segundo dados do BC, ocorreu no ano passado. O período atual caminha para ocupar o segundo lugar desse pódio.

A restrição de recursos na poupança atinge diretamente o crédito imobiliário. Isso porque há previsão em lei de direcionamento obrigatório de 65% do saldo do instrumento para as linhas de financiamento da cadeia habitacional, seja na aquisição da casa própria ou para custear obras. A caderneta, que tem remuneração para os aplicadores de 0,5% ao mês mais a variação da Taxa Referencial (TR), funciona como o funding de menor custo, essencial para que os empréstimos possam manter taxas acessíveis.

Em 2021, a poupança registrou saques líquidos, ou seja, a diferença entre as entradas e saídas de recursos, de R$ 35,5 bilhões. No ano seguinte, houve retiradas líquidas de R$ 103,24 bilhões. Em 2023 até setembro, a aplicação tradicional viu evaporar mais R$ 86,13 bilhões.

Nos três últimos anos, a sangria de recursos alcançou R$ 224,87 bilhões, segundo dados do BC. Como atenuante, em 2020, em meio às medidas de isolamento e, consequentemente, restrições ao consumo, a poupança registrou uma entrada líquida recorde de R$ 163,31 bilhões. No entanto, esse saldo positivo foi totalmente consumido de 2021 até início de 2023. No momento atual, o déficit já alcança R$ 61,56 bilhões.

Em compensação, o mercado de capitais apresentou forte crescimento, como indicam os dados da Abecip, e passou a ocupar parte do espaço deixado pelo recuo da caderneta na estrutura de funding. “Hoje, em todos os principais bancos que fazem crédito imobiliário, a carteira imobiliária está bem superior à captação de poupança, sendo necessário usar funding alternativos de tesouraria como LCI e LIG, por exemplo, para complementar os financiamentos imobiliários”, diz o diretor de crédito imobiliário do Bradesco, Romero Albuquerque.

Para o diretor-executivo de habitação da Caixa Econômica Federal, Rodrigo Wermelinger, o ano de 2023 “foi um [período de] bom aprendizado”. Conforme o especialista, foi um ano com uma captação líquida negativa da poupança, “mas também foi um ano muito forte de crédito imobiliário”. Na visão do dirigente do banco, “isso mostra que todas as instituições financeiras já trabalham com um mix de recursos da caderneta com letras e instrumentos indexados ao CDI no crédito imobiliário”.

Além do desenvolvimento do mercado de capitais, com ampliação das fontes de recursos para as linhas habitacionais, a transformação digital tem cumprido papel relevante no desenvolvimento do crédito imobiliário. Gamba, do Santander, afirma que o investimento em tecnologia pelo banco trouxe aumento de eficiência na conversão de consultas em operações, além de melhorar os prazos de execução.

“A tecnologia faz com que a produtividade aumente”, avalia o diretor do Santander. “Temos um aproveitamento maior de quem faz uma simulação de crédito. Além disso, a jornada digital permitiu uma redução expressiva de tempo para emissão de contrato. Em cerca de 80% da nossa produção, conseguimos emitir o contrato em menos de 20 dias [ante uma média de três meses há alguns anos].”

Do lado das incorporadoras, a segurança trazida pela Lei do Distrato, de 2018, que disciplina as condições para a devolução de imóveis adquiridos na planta, permitiu maior equilíbrio financeiro para as companhias e o crescimento dos lançamentos. As normas definem multa contratual de até 50% do valor já pago em caso de desistência.

Antes da nova lei, havia frequente judicialização dos distratos e, na maior parte das vezes, as incorporadoras eram obrigadas a devolver de 75% a 90% dos valores recebidos. Essa falta de regramento estimulou, na visão das incorporadoras, uma espécie de indústria de distrato, na qual especuladores adquiriam diversos imóveis na planta – mesmo sem recursos suficientes – para revendê-los com lucro em períodos de alta de preços. O alto índice de devoluções de unidades antes da legislação tornou o setor muito vulnerável aos períodos de baixa no ciclo imobiliário.

De acordo com dados da Associação Brasileira das Incorporadoras (Abrainc), em 2023 até agosto a relação distratos-vendas

– devoluções em relação ao volume comercializado – atinge 13,6%. Para se ter uma ideia da mudança, antes da lei de 2018, o índice chegou a beirar os 50% em épocas críticas.

Os efeitos positivos podem ser observados nos dados de lançamentos de novas habitações. Levantamento do Sindicato da Habitação de São Paulo (Secovi-SP) mostra que, de 2013 até 2018, a média de lançamentos anual da indústria da construção na capital paulista, o maior mercado do país, situou-se em 28,8 mil unidades. De 2019 a 2022, o número mais que dobrou, para 70,7 mil.

O ano de 2022 marcou um recorde da série histórica dos indicadores da Abrainc- Fipe em termos de vendas de imóveis novos no país. Foram 150 mil unidades comercializadas e alta de 10% sobre 2021, que já havia registrado a melhor marca anterior, com 143.576 empreendimentos negociados. Os números no ano até agosto mostram alta de 20,6% em relação ao mesmo período de 2022.

De acordo com o diretor-executivo da Abecip, Filipe Pontual, com demanda resiliente e melhora dos indicadores, existe expectativa de aceleração na entrega de empreendimentos em 2024. Conforme o dirigente, a previsão é de um valor de cerca de R$ 160 bilhões em unidades habitacionais apenas no ano que vem. “O maior número de vendas e de lançamentos se reflete diretamente na demanda por crédito imobiliário”, afirma.

Para Albuquerque, do Bradesco, a queda da Selic tem outro efeito positivo indireto na demanda. “Com ciclo de baixa nos juros, com reflexos imediatos nas aplicações financeiras, é natural que clientes de perfil investidor voltem a comprar imóveis e, neste caso, façam os financiamentos como forma de diversificar seu portfólio”, afirma.

Fonte: Valor Econômico, com Sérgio Tauhata.